quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Produzindo textos pertencentes a gêneros de diferentes esferas

O que um número não faz

Naquela nova casa da Rua Um pela vez primeira teria um espaço para organizar meus livros, deliciar-me com seus escritos, sentar-me em minha escrivaninha, enfim, ter um espaço para estudar. Não era um cômodo muito amplo, mas com certeza possibilitaria minhas viagens ao mundo da leitura e da escrita. Permitiria inclusive que eu fizesse de meus escritos momentos de criatividade, crítica, desabafo, confidências...
Nele teria minha estante e ela seria do jeito que sempre sonhei, com repartições onde caberiam todos os tamanhos e espessuras de livros, detalhe: iria até o teto, apresentando imponência, praticidade e beleza.
Tratei de encomendá-la ao melhor marceneiro da cidade, careiro, segundo as más línguas, mas excelente profissional. É bem verdade que urrei para pagar a “filha da p...”, porém valeria a pena.
A casa não ficava perto da oficina. Era a penúltima do quarteirão da CECAP, ao lado do açougue Boi Bom, que por sinal fazia um espetinho da hora, mas isso é uma outra história.
Estava ali há algumas semanas e não cansava de apreciar meu cantinho de leitura. Tanto que, quando o marceneiro, ao preencher o pedido da encomenda, perguntou-me o endereço da entrega, tive um instante de incerteza, entretanto, foi só um momento. Pensei rápido: “se o açougue é 8963, a casa é 8964”. Mas lembrei-me de que, ao ir ali pela primeira vez, observara que, apesar de ser ao lado do açougue, havia uma inversão nos números.
- Rua Um 8962 – respondi, e o marceneiro desenhou o endereço no pedido.
- Tudo certo, dona Errivaine. Mais ou menos daqui a um mês sua estante será entregue.
- Um mês, marceneiro! Tudo isso? Diminui este prazo vai.
- A estante é grande, sou caprichoso, gosto de satisfazer meus clientes. Digamos, três semanas.
Contei os dias. Aguardava com ansiedade o momento de ter meu cantinho de estudos arrumado, com a minha tão sonhada estante personalizada, onde enfim, poderia arrumar os livros por assuntos, autores, tamanhos. E, mais que isso, sentir-me uma estudiosa de verdade, uma leitora, cercada de livros por todos os lados. No dia da entrega, voltei do trabalho apressada para ver minha estante.
- Como é, chegou? – perguntei ao entrar.
- Chegou o quê? – respondeu meu filho.
- Como o quê? A estante!
Não chegara. O excelente marceneiro não cumprira com o combinado, ah cidadão filho de uma p...Telefonei-lhe sem pestanejar, no tom da voz, minha indignação. E ele;
- Como não cumpri? Andei com sua estante nas costas de cima pra baixo e não encontrei 8962 nenhum. E o açougue Boi Bom? Só tem de bom o local, porque açougue mesmo não existe.
- Fiquei inerte. Com certeza dera-lhe o número errado.
- Diga o numero correto e sua estante estará em sua casa, hoje, mesmo.
Fiquei sem palavras. Se não era 8962, qual número seria?
Não era 8962, disso tinha certeza...E o marceneiro ao telefone:
- Qual é o número dona Errivaine?
- É 6289, senhor...É isso, 6289.
- Muito bem, 6289. Já anotei. Ainda hoje terá sua estante.
Não tive. Será que havia dado o número errado novamente? Dei.
Corri ao telefone para me desculpar.
- Senhor..., é a Errivaine...da estante.
- A senhora está querendo brincar comigo?
Comecei a rir, enquanto o marceneiro, enraivecido, dizia que não ia mais entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-la, pois ele não era palhaço, etc, etc... E com isso não consegui explicar-lhe: que 6289 é o meu telefone.

Um comentário:

Tamara disse...

Adorei esta, meninas, usaram e abusaram da criatividade. Bjs, Tamar.